E O SER DE NATUREZA TORNA-SE UM SER DE CULTURA
- maria helena Cruz
- Jan 29, 2019
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A transcendência é um conceito constantemente empregado no contexto filosófico e religioso. Desde Platão o termo vem sendo utilizado e seu conceito se opõe ao que é considerado imanente, ou seja, o que é imanente constitui-se em uma realidade física, material, palpável e sensível enquanto que, o que é transcendente, é algo que não constitui-se de elementos materiais, mas de uma “(...) realidade imaterial, de uma natureza metafísica e puramente teórica e racional”(PORFÍRIO,2018), ou da transformação ou superação destas realidades imateriais de um estado, para outro estado superior, ideias que surgem a partir de uma experiência empírica inicial a qual é superada, ou transcendida.
A inteligência humana é um fator de transcendência. Diferentemente da inteligência animal, a qual está ainda muito ligada, na maioria dos casos exclusivamente ligada, ao instinto, mesmo em casos como o constatado pela etologia, onde chimpanzés mostraram-se capazes de criar utensílios simples e organizações sociais elaboradas a partir de formas elaboradas de comunicação, a inteligência animal ainda é concreta, incapaz de tirá-los do estado natural (ARANHA,1992), no entanto, ela, a inteligência humana, torna o homem capaz de transcender tal estado. Capaz de superar o estado de natureza e se colocar em um estado de cultura.
Cientificamente, a transcendência do homem como ser natural tal qual os outros animais, dependente da natureza para suprir suas necessidades de sobreviver, para o homem como ser cultural capaz de transformar a natureza não só em favor de sua sobrevivência, mas de acordo com seus mais variados desejos em busca de conforto e satisfação só se deu a partir da maior invenção humana de todos os tempos. A invenção que tornou possível todas as outras grandes invenções e revoluções ao longo do tempo. A invenção e o domínio da linguagem simbólica.
Com o domínio da linguagem simbólica o homem não mais está atado ao mundo imanente, ou ao mundo físico e palpável, mas agora ele pode atribuir a esse mundo símbolos que o permitem lidar com a realidade de forma abstrata. Em grupo, o homem é capaz de criar formas de comunicação e técnicas de trabalho capazes de domar a natureza e usá-la em seu favor e de acordo com suas necessidades.

Tal fator de transcendentalismo, ou seja, a linguagem simbólica, também tornou o ser humano capaz de avaliar sua condição no mundo. Suas pegadas culturais se evidenciam através dos tempos, tanto que a própria transcendência do homem de ser natural em ser de cultura está retratado na primeira obra escrita já encontrada. Está relatada na mais velha história registrada. “A Epopeia de Glgamesh”.
Nela, Enkidu, criatura criada pela deusa Aruru através de suas mãos úmidas, esculpindo a argila. Sua criação deu-se para barrar os propósitos tiranos de Gilgamesh, no entanto, após sua criação, Enkidu vive a correr livre pelo bosque ao lado de cervos. Alimentando-se de grama e servindo-se do leite das tetas das gazelas, ou seja, Enkidu é um ser natural como qualquer outro animal, porém, após o contato armado pelos deuses, com a prostituta do templo, a criatura tenta voltar a vida natural, mas os animais o rejeitam. Volta choroso a prostituta que o indaga o porquê de tentar voltar aos animais, quando ele agora assemelha-se a um deus. A mulher lhe dá cerveja e pão e despe-se de seus trajes. Com uma parte ela veste Enkidu e com a outra se cobre. Greenblatt (2018) em sua obra descreve que esse ato de vestir A criatura dos deuses não se fazia por vergonha ou proteção, mas simbolizava a transformação do ser natural em homem, em ser de cultura. Tratava-se da transcendência do homem de ser natural, para ser de cultura.
No livro de Gênesis também há registro dessa transcendência da natureza para a cultura, porém não é expressa como benção divina, mas como castigo de Deus. Ele, que é o ser de pura transcendência, segundo os gnósticos, desvinculado de qualquer ligação com a matéria, ao perceber que Adão, o homem criado a sua semelhança, juntamente com sua companheira Eva caíram em tentação, comendo o fruto proibido, os expulsa do Éden.
No Jardim do Éden, posteriormente chamado de paraíso, o casal vivia em estado natural. Sem vestes, servindo-se do que a natureza lhes servia. Sem necessidade de nada além do que lhes era naturalmente apresentado, porém, ao descumprir as regras, o casal é expulso do paraíso e condenados a viver do suor do seu próprio rosto, ou seja, a transcendência de seus pensamentos para moldar a natureza de acordo com as suas necessidades, a inteligência transcendental para ultrapassar o estado de natureza, para superar os desafios impostos pelo cenário de sua nova realidade só se desvelou por conta do castigo imposto.
Afinal, esse é o cerne para o transcendentalismo das ideias, da inteligência humana. A necessidade. Necessidade de moldar o mundo a sua maneira, de acordo com suas vontades e necessidades.
Embora as narrativas antigas de Gilgamesh e de Genesis estejam baseadas em teorias criacionistas e não referenciam a transcendência do pensamento humano munido da linguagem simbólica, levando a inteligibilidade estritamente humana, sabe-se, como citado anteriormente, que quando o homem primitivo desenvolve e domina os símbolos, tornando possível a comunicação a partir abstração do mundo físico, principalmente em seu grupo social levando-se em conta as diferenças de comunicação específicas e inerentes a grupos distintos, ele alcança o poder de tornar sua realidade transcendente, ou seja, o que lhe é real não está mais atrelado ao que é sensível e é nesse ponto que a realidade fatual da transcendência, a partir da linguagem simbólica, se assemelha às narrativas antigas de Gilgamesh e Gênesis.
Tanto no épico mesopotâmico quanto no texto bíblico hebreu, ao cruzar a linha do ser de natureza para o ser de cultura, o homem é comparado a deuses. Tal comparação deve-se ao poder de criação concebido ao ser humano graças à sua inteligibilidade única, entre todos os outros animais. Assim como os deuses são capazes de se fazerem transcendentes, ou o são por natureza no caso do Deus cristão, também o homem se torna capaz de superar suas limitações físicas e temporais através da linguagem simbólica.
A humanidade não está mais presa às suas limitações físicas e temporais. O homo faber e o homo sapiens são capazes de construir tecnologias para transpor suas limitações e registrar não só os acontecimentos cotidianos, mas também suas descobertas e técnicas para que outras gerações consigam aprimorá-las.
Embora a precariedade humana ainda esteja presente, pois o homem tem sua visão de mundo limitada a contextos sociais e filosóficos próprios de seu tempo, de sua época, no entanto é essa precariedade que estimula o ser humano a transpor suas dificuldades e a avançar em suas conquistas.
A despeito da questão de época, pode-se destacar então o papel da tecnologia na transcendência da humanidade moderna e pós-moderna. Claro que a tecnologia está presente desde a invenção da linguagem simbólica, sendo ela própria a maior tecnologia transcendental na humanidade, mas os recursos tecnológicos elevam essa transposição do mundo físico, para o imaterial de forma inimaginável há poucas décadas atrás.
A era da informação funde as concepções de real e virtual, surgindo uma nova concepção onde muitas vezes os seres humanos se perdem dentro do mundo virtual na busca de algo papável para superar sua precariedade. A busca por transcender as limitações humanas, levaram a criação de máquinas que aceleram esse processo. Cada vez mais a semiótica torna-se visível e próxima ao mundo sensível, de forma que cada vez mais o homem se sente livre das amarras das imperfeições humanas, tomando as rédeas de forma cada vez mais ativa e agressiva de sua própria criação.
A transcendência humana, baseada na tecnologia e informação, não acontece mais a cada geração, mas a cada segundo em que o ser humano, enclausurado em sua guerra interior contra seus próprios defeitos, encontra mais uma forma de superar e se tornar um pouco menos limitado diante da realidade que o cerca.
GREENBLATT, Stephen. Ascensão e Queda de Adão e Eva. Ed. Companhia das letras. 2018.
PORFíRIO, Francisco. "Imanência e transcendência"; Brasil Escola. Disponível em <https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/imanencia-transcendencia.htm>. Acesso em 15/11/2018.